quarta-feira, maio 09, 2012

Amor de Minina

Era um domingo à noite, dia 11 de dezembro. Eu havia passado aquele dia todo treinando na chuva que fazia no Parque Lage. Lembro que cheguei em casa com terra no cabelo e muito, muito frio. Quando me deitei à noite, ouvi o Atlas latindo sem parar nos fundos de casa. Eu conhecia meu cachorro, ele não fazia aquilo de graça, tinha alguma coisa. Meu namorado na época estava lá comigo, mas coube a mim fazer as vezes do macho da casa e ir descobrir o que era o barulho. Levantei, calcei os chinelinhos e fui lá investigar com uma lanterna. Atlas estava virado pra um breu completo, muito firme, e insistia em seu latido. Pensei:
– Tem um bicho gigante na porra dessa sombra. Até me cachorro que não tem nenhum polegar opositor pra honrar sabe que tem que manter uma distância segura disso e eu estou aqui, de pijaminha, depois de ter exaurido todas as minhas energias. Que triste fim o meu.
Chovia muito, já disse isso? É um dado importante. Pense naquelas cenas de Jurrasic Park, com o Tiranossauro da pá virada atacando os humaninhos sem chuva. Não ia ser tão dramático, talvez aquela menina nem gritasse tão alto. Mentira, a gente sabe que ela ia gritar, mas só.
Eu lá, me lamentando do meu destino mas disposta a encará-lo com bravura, joguei um facho de luz no breu que incomodava tanto meu fiel cão. E ele se deteve por um segundo, levantou uma das patas dianteiras como fazia quando jogava um charme que só ele tinha, e levantou as orelhas como fazia quando eu dizia "biscoito". E então vi ali um bichinho assustado, com o rabinho entre as pernas e muita sujeira no corpo. Foi só no dia seguinte que descobri que, ao contrário do que parecia, ela não era todo da mesma cor, barro vermelho, e sim combinava preto com marrom. Era um vira-lata de Yorkshire, tinha aquelas patinhas magrinhas, aquele mesmo fucinho e aquele mesmo latido agudo de dói até a espinha; só não herdara os longos pêlos sedosos da raça, eram curtinhos e ralos. Chegou já adulta, com alguns pelinhos da nuca grisalhos. Nunca chegou aos 5 quilos.
No início eu a chamava de Diabo, porque só podia ser filha do capeta, posto que nascera da bananeira num domingo à noite chuvoso. Não havia outra explicação plausível, por eliminação, era o Capiroto Júnior. Eu notei que não se tratava de um cachorro de rua que por engano teria entrado na minha casa. Não tinha bicheiras, não estava magra demais e sempre queria subir no sofá. Deixei-a com as minhas duas besta-feras enquanto investigava se alguém dava por um cachorro perdido. Ninguém. E assim ela foi ficando. O mesmo namorado da época insistia para que eu a mandasse para um sítio perto dali, que cuidava de mais de 70 cachorros à época. Hoje, já deve ter passado de 200. Não dei ouvidos. Ela se dava bem com a turminha lá de casa, era miúda, não seria uma despesa a mais muito grande, comia pouco. E sobretudo porque entre os voluntários ficarem com setenta e poucos +1 e eu ficar com três, achei mais justa a segunda opção. Ironia é que quando terminamos, inventou que queria vê-la nos finais de semana, já que havíamos adota-a juntos, como uma filha. Pessoas e as maneiras inacreditáveis que inventam de não serem nem um pouco razoáveis ou coerentes...
Eu lembro que na época, sempre que chegava em casa, considerava a possibilidade dela não estar mais, afinal, era justo, nunca me senti sua "dona". Pra mim, ela tinha escolhido entrar lá, era livre pra escolher quando saísse. O que ela até fez algumas vezes, mas era só pra dar uma voltinha na rua, sempre voltava. Com o tempo, mudei o nome. Chamei de Minina, porque era mini, e cabia muito bem a ela, era engraçado chamá-la "vem cá, Minina". Uma coisa engraçada aconteceu uma vez em que andava com ela na rua e uma garotinha se aproximou e disse:
–  Que bonitinha! Posso fazer carinho nela?
–  Pode, ela só é meio assustadinha mesmo.
– Qual o nome dela?
– Minina.
–  Ai, que legal! Ela é igual a mim. – Crianças possuem alguns dos mecanismos mentais mais sublimes, não é mesmo? E quando a minha miudinha resistia a se entregar ao prazer de um cafuné casual, a garotinha insistiu – Vem cá, Mênina! Aqui, Mênina.
Eu achei engraçado como aquela seria, muito provavelmente, a única vez em que a garotinha poderia se entregar ao vício do carioquês de corromper algumas vogais sem o menor medo de errar, e ainda assim se esforçou em ser correta, sem sucesso.
Adorável, única, ela ria, só quem viu acredita, mas ela também sempre foi muito assustada. Nunca me disse, mas creio que a maltrataram demais antes que chegasse até mim. E como todas as criaturas que amo, conhecia a medida certa de me enlouquecer, só o suficiente para eu achá-la ainda mais engraçada. Curioso é que apesar de seu tamanho diminuto, sua falta de robustês ou, como eu dizia, seus quatros quilos que a faziam levar coça de saco de carvão, eu jamais a vi como um ser frágil, ou até indefeso. Sabia que merecia e precisava de muito amor, mas pra mim era visível uma força interior imensa, tão grande, que as vezes até saia através de seu corpinho. Aliás, isso era a tônica do pessoal lá de casa. Atlas era o meu miúra, meu gigante capaz de suportar o peso do mundo sem se curvar ou perder sua leveza. Canela era minha Joana D'Arc, minha amazona, caçadora. Com a Minina, não seria diferente. Sua miudeza não impedia que andasse em meio aos grandes e aos fortes e acompanhasse seu passo.
E noite passada ela se foi, dormindo, sem aparentar dor, como merece. Nunca soube sua idade, sua história, seus nomes ou seu passado. Eu a via como um presente, como uma estrelinha que me chegou num dia chuvoso. Sabia que não era nova, então não havia a menor condição de calcular sua estimativa de vida. Restava a mim ser grata por tê-la recebido na minha casa, com a minha família de quatro patas na época, e que com o tempo cresceu e a amou da mesma forma que eu. E agora, que minha estrelinha menor em tamanho mas imensa em brilho sobe, e se junta àqueles que a receberam logo de cara, só posso agradecer a ela pelo tempo que tivemos, e àqueles que a acolheram e amaram como eu. Obrigada de verdade, valeu muito à pena.

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