Da primeira vez que vira o apartamento com o senhorio, não havia
percebido a perfeição de sua arquitetura, apenas havia gostado da
possibilidade de se afundar numa banheira de água quente quando
precisasse relaxar. Mas então o tempo e o uso haviam lhe mostrado como
tudo estava realmente em seu devido lugar. O rack de toalhas próximo à
porta sustentava o aparelho de som que tocava músicas em modo menor e
letras em lamentos, a disposição do espelho era perfeita para que
pudesse olhar seu rosto banhado de lágrimas, emoldurado pelos cabelos
molhados que desciam pelos ombros mesmo confortavelmente sentada durante
o banho. A janela basculante suspensa acima do chuveiro, voltada para o
prisma do prédio fornecia uma acústica perfeita para que seu pranto
ecoasse sem grande esforço aos vizinhos, pelo menos àqueles das colunas 2
e 3.
Na primeira vez em que se indulgenciou ao rumino de suas
feridas, fora apenas atendendo uma necessidade simples e básica. Só que
depois fora agradavelmente surpreendida pelos olhares condescendentes
dos vizinhos, das palavras abstratas de consolo daqueles que cruzavam
com ela na área comum; inclusive recebera com prazer por baixo da sua
porta o panfleto em que dizia "entregue seu sofrimento ao Senhor e ele
não será mais em seu peito". Todos, ao menos das colunas 2 e 3,
começaram a demonstrar uma gentileza crescente. Todos, menos aquele
professor de literatura do 802, Henrique se a memória não lhe traía, que
se limitava a dar um bom-dia formal ao cruzar com ela no elevador e
tratava sempre de sair logo do hall de entrada quando algumas vizinhas
se encontravam e tentavam confortá-la. Ele não dava um sorriso cordial, nuca
perguntou o que havia se passado, sequer se estava melhor, não fazia
nenhuma outra gentileza além daquelas que já mandavam a boa educação.
Bem que comentaram que ele era gay. E insensível.
Assim então
cresceu o costume. E quando lhe faltava qualquer justificativa, ligava
para a mãe ou irmã e não se dava por satisfeita enquanto não estivesse
aos prantos causados por uma discussão qualquer. Na manhã que se seguia, era como música para os ouvidos o
toque da campainha. A vizinha de porta que, depois de deixar os meninos
na escola, sempre a chamava para uma conversa de ombro-amigo com café fresco e
uma fatia de bolo; situação perfeita para poder pintar a sua família tão ou
mais cruel do que via.
Foi então que na véspera do feriado deu-se
conta de que o consultor de informática com quem havia saído algumas
vezes não a havia incluído em seus planos de viagem. Teria o feriado
inteiro para tentar se convencer mais uma vez de que os homens eram
todos iguais. Desta vez fora fundo a dor, não era apenas mais uma
discussão com a mãe que já sabia como terminaria, não fora uma chamada
de atenção no trabalho, nem mesmo aquelas fofocas das colegas do
escritório. E o coração de mulher rejeitada pedia algo ainda mais
sensível do que o de sempre. Quando começou a tocar "Unbreak my heart"
sabia que tinha achado o bálsamo para sua alma.
Afundou o corpo na
água enquanto o vapor escalava os azulejos brancos das paredes. Abriu
as comportas de seu canto de lamentação, como um lobo que uivava à lua.
Pensou no vazio dos dias seguintes, o esgotamento de suas energias ao
ver mais um relacionamento dar em nada, a não-correspondência de seus
sentimentos.
Num relance achou que a música podia estar mais alta.
Pôs-se de pé para aumentar o volume, esticou os dedos e pressionou três
vezes o botão. E ao tentar voltar para o seu ninho de acolhimento,
desastradamente puxou a cortina do box que lambeu os frascos para o
chão. Ao ver o xampu caríssimo correndo em direção ao ralo, empenhou-se
em resolver aquilo o mais rápido possível para evitar mais desperdício.
Deixou o choro um pouco de lado, ignorou toda a emoção de "How could an
angel break my heart"e agiu prontamente.
Quando tudo já estava em
segurança, voltava para a banheira, tentando se lembrar onde havia
parado em seus pensamentos. E foi aí que a porta abriu de supetão. Num
reflexo olhou para a entrada do banheiro e viu a vizinha de andar que
sempre lhe dava apoio com o rapaz lutador do andar de baixo. De pé na
banheira, o corpo ainda molhado, tratou de puxar a toalha para se
cobrir.
– Ai, desculpa, amiga! Eu ouvi um barulho forte vindo
daqui, achei que tivesse acontecido alguma coisa, e com a música alta
você não me ouviu te chamar. Eu usei a cópia da sua chave pra entrar e
interfonei pra ele porque se algo tivesse acontecido, teria alguém forte
pra me ajudar.
– Ai, desculpa eu pela confusão, gente. A cortina
caiu mas eu to bem. – A voz começava a ser entrecortada pelo soluço. –
Acho que hoje não é meu dia mesmo, viu?
Segurava a toalha com uma
das mãos à frente do corpo, tapando os seios e o sexo, enquanto com a
outra mão tentava enxugar as lágrimas. E ainda conseguiu, estrategicamente, se
aproveitar do espelho atrás para poder mostrar suas curvas ao vizinho.
Banheiro perfeito, nunca falhava.
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