sexta-feira, abril 19, 2013

Sobre exorcismo e natais passados

Sendo alta, tendo voz cheia e alguns kimonos no armário, ninguém acredita muito, mas é fato: por dentro, sou feita de nada, um pastel de banana; praticamente uma ostra, dura por fora, molusco por dentro, e de vez em quando, produzo alguma pérola. Quem convive comigo um pouquinho mais saca isso fãcil, não precisa de muito. Basta um acorde de sensível sustentada um pouquinho mais, uma singeleza quase inconfessa, uma notícia triste que minha vista fica turva, minha voz desanda. E nem tenho cara-de-pau de falar que cairam ciscos nos meus olhos...
Pessoalmente, até eu me canso desse mimimi todo, dessa dependência crônica de rímel à prova d´água e lenço de bolso. Sério, odeio ser assaltada por este reflexo sensível, capaz de me pegar sem o menor aviso motivo. Tento, mas não consigo puxar a frieza dentro de mim diante de certas coisas. Eu já conheci fãs de comédias românticas que conseguiam fazer com que eu parecesse uma menininha de tranças cujo sonho é ser Miss alguma coisa. Vai ver eu sou. Só não sonho em ser miss-alguma-coisa, modelo de alguma fragância da Carolina Herrera, sim. Mas esta explicação não me satisfa, é muito curta. Em parte porque raramente tranço meus cabelos, só fui uma menininha por um período curto da minha vida, mas sobretudo porque ser modelo de 212 Sexy é uma carreira, não um sonho enlatado preso a um livro que todo mundo adora citar mas ninguém lê. A teoria que mais se fortalece comigo é que tudo não passe de história; melhor, histórico, uma grande barragem dentro de mim, litros de água represados que nunca desceram maçãs abaixo, luxos que eu, com meus kimonos, meus filmes de máfia e minha habilidade de trocar lâmpadas, me neguei.
E quem sabe a saída disso tudo seja um pouco de terrorismo, inundar a cidade. Pegar um dia (ok, mais de um) e fazer um retiro, me trancar no meu quarto, munida do álbum 21 da Adele, alguma coletânea com árias das mortes das heroínas das óperas italianas, boas traduções de Hamlet e Édipo Rei, DVDs de A cor púrpura, A lista de Schindler e Amistad, e sem nenhum, nem ao menos um, apoio, nenhuma caixa de bombom, nenhum pote de sorvete, nenhum vinho, nenhuma pipoca doce. Para os momentos de fome, eu contaria apenas com as propriedades frugais de  torrada de pão dormido e água, o que penso serem elementos auxiliadores no processo. E então, tudo que fora edificado em cada vez que meu sorvete caiu no chão, que meu balão estourou, que passei na frente de uma pet-shop pedindo o filhotinho e minha mãe disse não, que fechei a porta em cima do dedo, que meu irmão me falou que eu era feia e que nunca ia arranjar namorado, que o merthiolate doeu (sou velha assim), que eu senti saudades, que eu estudei mas não aprendi matemática, às vezes que senti falta de um abraço, que me senti pequena e frustrada, que meus joelhos doeram e eu não soube o que era, todas as vezes que não abri meu sorriso porque os dentes eram feios, os dias em que acordei e meu cabelo não me ajudou, que no espelho só havia uma mulher inadequada e feia, que o mundo me negou sua compreensão, que eu guardei pra mim minha clareza, que o telefone não tocou, que eu mesma fui a enfermeira da minha própria gripe, que acharam que eu poderia dar mais do que a própria vida não foi capaz, que as cebolas foram mais ardidas à lâmina do que se esperava, que eu fiquei na minha sala de estar sozinha com o nó na garganta, que o outro não foi justo comigo, que meus cachorros se despediram de mim, que as oportunidades não dariam jamais conta da minha gana e da minha ambição, que nem ao menos uma explicação me concederam, em que eu atingi o ápice do Everest e não havia ninguém para me dar parabéns, que esperavam que eu ainda agradecesse por receber toda a raiva que o mundo gerou e que foi mirada no meu peito; iria correr livre pelas planícies. E então, entregue neste transe retroativo, nesta imersão de natais passados, neste exorcismo de todos os fantasmas, neste plano de supervilão acontecendo, eu faria com que tudo isso seja lavado em lágrimas que, de tanto correr, chegam até o chão, devolvidas ao mundo como que sacrificadas, em agradecimento de tudo que aprendi e me fortaleci.
E aí, seca, exausta, de espírito nu, eu me encontre naquele ponto do qual os gurus falam, em que guardamos todos os ensinamentos da vida dentro de nós ao lado da nossa pureza pueril, da nossa criança interior, do olhar singelo diante de tudo, e tudo igualmente ao alcance da mão. Eu sairia do meu quarto cheia de memórias e absolutamente desprovida de cicatrizes, como um nascimento, só que desta vez, um pouco melhor equipada para a vida. Notem, equipada, jamais armada.
E aí eu comece a não mais chorar indefesa e vergonhsamente ao ver um boxer na rua, ao ouvir "What a wonderful world", ao assistir o final de Billy Elliot, ao estudar "Vissi d´arte", ao falar do que não foi, ao contar a sinopse de La Traviata, ao ler Shakespeare, ao lembrar dos adeuses que dei e dos beijos que me faltaram, aos afagos que não concedi.
Parece fácil, né? Logicamente que não. Torradas secas e triste eu encontre em qualquer lugar, o garrafão de água vem com 20 litros, e todo o material deprê-cultural que me falta pode ser entregue em casa. Mas precisa de algo mais do que isso. Requer coragem, e um senso inexplicável e resiliente; a mesma coisa que faz as águias voarem para os picos mais altos e arrancarem os bicos e as garras, para saírem de lá prontas para viverem ainda mais. Sério, como entender esse instinto destrutivo que nos leva à vida?
Enfim, ainda não encontrei o caminho para isto. Então, enquanto eu não faço isso, se é que vou fazer, eu me vou lidando com isso da mesma maneira que todo mundo, vai se equipadando para fazer com que a represa produza alguma energia no nosso dia a dia.

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