segunda-feira, abril 14, 2008

Melhor de 3

Eram amigos de infância, todos os 3. Cresceram juntos, no mesmo colégio, nas mesmas turmas, tomaram os mesmos porres.
Miguel era aquele que sempre arranjava a bebida, sabia quais eram os lugares quentes para se ir à noite. Primeiro teve uma moto, depois comprou um conversível. Sua afinidade não era com seu trabalho em si, mas sim com as portas que ele abria e com as mulheres que punha em seu caminho. Sempre tinha um projeto qualquer inusitado, mas se definia como produtor. Só que todos sabiam que seu ofício mesmo era ser solteiro, solteirão. E, com tanta experiência, sabia apontar os defeitos de cada uma que os companheiros escolhiam. Sabia com precisão qual deveria ser a altura, idade, número do sapato, grau de formação, formato de arcada e procedência da família; erudição que os outros ignoravam.
Humberto era sempre o bom amigo, o ponto de equilíbrio e união. Tornou-se arquiteto, projetou a casa dos sonhos de todos aqueles que conhecia sem nunca se preocupar em cobrar caro por isso. Não se casou. Começou a morar junto depois de 1 ano com uma mulher alta demais, de ancas secas, olheiras e nariz grego tudo no mesmo rosto, que vivia metida em vestidos retos como ela.
Alfredo sempre fôra caxias. Casou-se cedo, fez três crianças em uma mulher de cabelos oleosos, rosto banal, joanetes espremidas em sapatos de salto baixo e bico arredondado e pernas tortas. Tornou-se contador, nunca tinha grandes novidades. Vivia marinado em tinta e pilhas de papel intermináveis. E talvez essa mistura que tenha sido a causa da sua morte. A notícia era como uma tempestade, pegou a todos desprevinidos.
Em nome da velha amizade, não dispensaram o velório como a última chance de reunir o velho grupo. Miguel, sozinho de onde estava, viu a viúva num canto, os bicos arredondados de sempre, cercada dos filhos que a amparavam; viu o amigo remanescente apoiado no ombro anguloso e elevado da companheira que enxugava-lhe as lágrimas enquanto apertava-lhe a mão.
E viu que para cabelos oleosos, há xampus. Sapatos e vestidos saem, trocam-se. Idade passa. E para o que não há remédio, remediado está. Olheiras e pernas tortas são fáceis de se acostumar. Ombros angulosos não são assim tão duros. Duro é a solidão, o rosto sempre ignoto aquecendo o outro lado da cama.

Um comentário:

xistosa, josé torres disse...

Um rosto ignoto não pode aquecer ... pode reconfortar uma situação, mesmo que ignota ...
Uma balança de dois pratos.
O fulcro era o Humberto, mas como se equilibrava o sistema?
Miguel era o "ponto fundamental"

Não sei o que é "caxias" ... mas deduz-se da descrição.

Também só temos olhos para os defeitos dos outros ... nós somos o "Metro Padrão"

A vida é como é ...

A solidão é que meio caminho para o além ...