quarta-feira, abril 07, 2010

Memórias do jeito de que nunca fui.

Se tem uma coisa que eu acho que não pode faltar em qualquer casa são livros. Óbvio que eles vêm depois do colchão e da geladeira, mas muito antes da televisão. Acho que uma casa sem livro algum abriga pessoas sem memória e rasas; é, preconceito meu, eu sei. Sendo assim, conforme fui aumentando os meus horizontes, me atrevendo a ir mais longe e traçar meus próprios caminhos, fui me tornando cada vez mais viciada, fanática e rata de sebos. A coisa é tão séria que quando fui passar duas semanas em outro estado para participar de um festival, na primeira semana descobri o sebo de lá e na semana seguinte consegui desconto. Defendo estes redutos de papel impresso amarelado não apenas por adorar o cheiro de guardado que só os livros têm — é, eu adoro mesmo, melhor do que cheiro de carro novo —, mas também porque é ótimo poder encontrar livros fora de catálogo, que já não tem tanto apelo comercial. Ok, ok, ótimos livros a preços módicos, me pegaram, tá?
Mas existe outra coisa que eu acho maravilhosa nisso tudo. Por exemplo, eu tenho um exemplar de Les Fleurs du Mal aqui, todo em francês, publicado em Paris em 1927. Sempre pego ele com todo respeito e carinho, se já não bastasse o meu profundo amor pela obra de Baudelaire, eu sei que meu livrinho já viveu mais do que eu, inclusive em, no mínimo, dois países diferentes. Tenho também um Mały słownik polko-portugalski, ou Pequeno dicionário polonês-português. Este é curioso porque, além de ter um caminho de traça da capa até a página 117 — perdeu algumas palavras, mas menos do que sobraram —, há uma dedicatória logo na primeira folha, num polonês guiado por uma caligrafia de dar inveja a muita professora. Numa tradução livre, diz:
Tanto quantas folhas já no repolho
Tantos quantos pedintes há na quermesse
Tantas quantas solteiras há na missa 
É o quanto gosto de você.
Cada umas destas marcas impressas longe da gráfica me levam à viagens especulativas sobre seus antigos donos e as circunstâncias que os cercaram. Apesar de terem sido entregues a um sebo, vejo através destas outras impressões uma evidência de que eles foram caros a alguém, e é quase como se eu fosse capaz de herdar o afeto que o livro já possuiu.
Bonito. Só que aí aconteceu uma coisa curiosa. Dentro de um dos livros que comprei recentemente, vieram duas fotos, uma datada de 99, que mostra uma moça segurando uns livros, me parecendo o primeiro dia de aula em algum lugar que ela tenha batalhado mesmo para cursar; a outra, uma moça segurando uma criança, ambas sorrindo, ante uma sala decorada para o natal que parece impressa num fundo. Aparentemente, não há relação entre as pessoas das duas fotos.
Já faz quase uma semana que essas três pessoas sorriem para mim da minha mesa. E eu me pergunto — e pergunto a elas também — sobre qual destino devo lhes dar. Até já pensei em entrar em contato com o sebo, mas acho muito pouco provável que alguém saberia restitui-lhes ao antigo dono. Coragem para jogar fora é algo que sequer passa pela minha cabeça.
Mas antes que digam, não, não sou entulheira. É apenas de se esperar, naturalmente, que alguém tão apegada a livros como eu tenha um respeito considerável por memórias, ainda que alheias.

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