domingo, outubro 23, 2011

Sobre drama e vida

Na minha infância,  minha mãe inscreveu a mim e meu irmão num curso bem conhecido de inglês. Odiei, não aprendi quase nada — e não porque eu deveria estar na turma especial, mas sim porque não ensinaram muita coisa mesmo —  não fiz um amigo sequer, além do fato de que eu sempre era a última criança sentada na escada, esperando a caroninha para voltar para casa. O curso nunca teve qualquer chance comigo,  nunca que eu ia gostar. E ao longo da minha adolescência, nada aconteceu para que eu pensasse que curso de inglês era algo legal ou que professores de inglês eram pessoas legais; todos os professores de língua estrangeira que tive no colégio só contribuíram para eu formar meu axioma de que pelo menos 90% deles são uns imbecís. E isso foi tão forte que quando passei para a faculdade de Letras, eu ainda carregava esta aversão, durante uns bons períodos eu cursava a chamada habilitação monolíngüe. Até que um belo dia —mentira, era uma bela noite, este era o horário em que eu me entregava às minhas leituras por gosto e não por estudo —eu havia comprado para o meu namorado na época Julio César, de Shakespeare, mas eu disse que antes de ele receber o livro, eu faria uma minusciosa inspeção para me certificar de que não faltava palavra alguma na edição dele. E ao imperador traído de Roma se seguiram Macbeth, Otelo, Hamlet, e eu ia me encantando cada vez mais pelo dramaturgo inglês. Me fascinei pela sua forma indireta de dizer as coisas, pela dimensão de suas personagens e até pelas inúmeras possibilidades dentro de uma mesma obra. E então começou a me coçar algo na cabeça, me perguntando como seria aquilo tudo em vernáculo. Mais ou menos na mesma época, eu andei lendo algumas traduções de poemas do Blake feitas por um escritor e tradutor  de quem mais tarde eu viria a me tornar aluna. Cheguei a tê-las nos meus murais, e todo dia sorver um pouco de seu lirismo. E foi aí que decidi vencer meus traumas, porque eu queria ler aquelas coisas todas no original, afinal —apesar do meu inglês de auto-didata naquela época não ser nem um pouco ralo  —eu estava buscando algo um pouco além das capacidades que tinha. E foi esse o caminho de eu ter me tornado tradutora. Por causa de dois Williams.
Até hoje guardo meu encantamento por Shakespeare, ainda mais ouvindo algumas óperas em cima de suas tragédias.  Apesar de achar que, se não fosse por ele, tudo seria mais fácil. Ok, eu admito que não foi só culpa dele, mas acho que ele tenha sido o principal responsável. Isso porque lá na década de noventa, aquela que veio antes de 1600, ele inventou de escrever um romance entre dois jovens, de famílias rivais e poderosérrimas, que morrem no final. Se adolescente já é chato por natureza, imagina apaixonados! Eles, que não tinham noção de nada além da ebulição dos próprios hormônios, se enganaram absurdamente e juravam por tudo que há de mais sagrado que estavam amando e terminam morrendo por isso. Não, não me venham dizer que eu que não tenho poesia no coração e sim, eles se amavam. Qualquer um que ama ou já amou sabe que isso é algo que se constrói com o tempo, com o convívio e com a consciência, longe daquele maravilhamento da paixão. Quando amamos alguém, amamos também nos seus e nos nossos defeitos. Aqueles dois pentelhos nunca tiveram a chance de aprender sobre isso. Terminaram com sua vida de uma hora para outra, perdendo, inclusive, toda a chance que tinham de selar a paz em Verona através de um casamento que selasse a aliança entre os manda-chuvas da cidade.
E lendo essa história, as pessoas acham que amor é isso, ao invés das coisas serem tristes, trágicas, elas passam a ser heróicas, e aí todo o sofrer parece que valida o amor que sentem, como se nenhuma alegria pudesse ser completa, legítima ou verdadeira sem dor e drama envolvidos. Há algum tempo, eu tratei um pouco sobre isso aqui.
Esta história toda podia ficar lá, no século XVI, e parar de mover as pessoas nessa roda que as encoraja a alimentar coisas ruins em suas vidas, coisas essas que vão desde sentimentos a relações. Mas aí, quatro séculos depois, um jornalista tem um filho brilhante e talentosíssimo, que resolve escrever samba e até livro, e faz isso como ninguém, e até perseguido político o cara conseguiu ser, de tanto que sofreu nessa vida. E em suas letras ele fala de amores bandidos, traições, mulheres mal amadas, dores de cotovelo e gente tão sem nada que se agarram até no tapete atrás da porta. Gente, sério, adoro, sou fã, mas tenho que admitir que muita fossa é alimentada porque há algo de redentor em viver dentro de uma letra do Chico Buarque. Aí fica difícil escapar dessa filosofia, até porque muitas vezes as pessoas à nossa volta, em quem buscamos outros ângulos e perspectivas para nossos problemas, ouviram os mesmo sambas, leram — não, em sua maioria ouviram falar, no máximo viram o filme com o Leo DiCaprio — a mesma tragédia. Há uma outra possibilidade, talvez ainda mais triste, de pessoas que não suportam a alegria alheia e preferem estimular, de maneira mascarada, que suas pessoas "amigas", ajam contra a própria felicidade. Mas também não vou falar delas. Posso falar, por exemplo, de como é fácil escutar esse tipo de conselho, e eu acho que isso tem a ver também com a mania também que temos de diminuir o que é nosso, de achar que nossas roupas não são assim tão boas, nossos cabelos não são lá tão bonitos, nossas crianças não são lá tão especiais, afinal a grama do vizinho é sempre mais verde. Pode ser, e, bem provavelmente, só é porque as gavetas dele são zoneadas ou suas leituras estão sempre atrasadas.
Por mais que possamos apreciar os clássicos da literatura, isso não quer dizer que tenhamos que viver ditados por seus desfechos. Por mais que entoemos "Trocando em miúdos" ou "Cálice", não nos esqueçamos que ele também escreveu que "apesar de você amanhã há de ser outro dia", e pensando assim, até ele, recentemente, lançou um album em que fala de coisas boas, leves e alegres.

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