quarta-feira, novembro 24, 2010

Filhos da boemia

Fixou a vista pela enésima vez no relógio frente à mesa, mas desta era apenas para se certificar se havia limpado devidamente os óculos. Reclinou-se na cadeira confortável e suntuosa, tentando se resignar ao fato de que seu trabalho, por hoje, estava mais do que encerrado. Imerso naquele silêncio que se erguia dos arquivos empoeirados e das persianas decorativas, deixou seus olhos vagarem janela afora, não importando qual fosse o tempo lá fora.
Após a separação, seu escritório adquiriu a propriedade que sua casa perdera de acolhe-lo. Doía-lhe o fato de que não tivera sido capaz de fazer de lá um lar, por mais que tivesse escolhido os tapetes e as cores certas. Fato é que sentia-se incapacitado, inadequado e esgotado para qualquer coisa em sua vida que não fosse sua profissão; e esta sensação foi sendo construída com cada lágrima vertida por ele, cada palavra dura a ele mirada e cada acusação a ele atribuída. Ah, não, não mais poderia tolerar escândalos, injustiças, desmesuras ou prantos infindos. E, sendo assim, seu escritório era um refúgio, um oásis de tranquilidade e impessoalidade.
Era por volta das 20h quando o aparelho branco sobre a mesa tocou, como um golpe de vidro estilhaçado. Dominando o susto que havia levado, fitou o plástico se perguntando se deveria mesmo atendê-lo. Encostou o fone na orelha, e respirou tranquilo quando ouviu seu nome sendo dito por um sorriso, prova inconteste de que não se tratava de ninguém que devesse evitar.
— Fala, cara!
— Estou chegando. Vai rolar aquele chopp. — ouviu entre uma conversa animada ao fundo.
— É, você falou...
— Não anima, não? — a conversa parecia diminuir.
— Cara, to ocupado aqui...
— A essa hora? Já pode parar de trabalhar, irmãozinho. Você não vai ser funcionário do mês mesmo! — Riu, ainda que sem vontade, mas o primeiro riso do dia. — Olha, seguinte, to quase chegando no seu prédio. É só descer. — E a conversa ao fundo parecia ir voltando.
— Não precisa, to de carro aqui.
— Mas agora vai poder encher a cara.
— Po, não sei se animo...
— Bora, o pessoal tá só te esperando.
— Que pessoal?
— Que você conhece tá aqui o Thiago e o Marcelo.  O Bruno e o Ricardo já foram lá para ir segurando mesa. — E ao final dessa frase se ouviu uma risada clara, feminina. Risada clara essa que entrou pelo seu ouvido esquerdo, disse-lhe algo que não soube entender bem o que era e o calou, por um milissegundo, quase nada. Mas ele sentiu. Ele sabia que havia se calado. — Tamo parado aqui embaixo. Desce aí.
— Cara, vou só te cumprimentar.
Rolou a cadeira pelo carpete, postou-se de pé diante das dunas de papel sobre o tampo de madeira, desligou o monitor do PC e se dirigiu à saída, passando frente ao banheiro. E parou. Girou nos calcanhares, olhou à volta sem entender bem o que queria, botou as mãos nos bolsos, tentando se lembrar do que precisava tanto antes de ir, sem sucesso.
Não vou demorar. Em cinco minutos eles já vão ter ido embora e eu volto.
Apertou o botão do elevador e devolveu a mão ao bolso enquanto não chegava. Com o soar da campainha afinada acima de sua cabeça, abrigou-se sob a luz branca que deslizava entre os pavimentos. Desceu, sem pensar muito, sem se olhar no espelho, sem erguer os olhos de seus sapatos. Chegando ao térreo, cruzou a portaria e o som da mesma conversa animada ia ficando mais alto à medida de cada passo que dava. Com o abrir do blindex, foi saudado por três rostos conhecidos. Mas o que lhe chamou atenção foi mesmo o inédito.
— Opa! Chegou quem faltava! — falou-lhe o mesmo com quem conversara no telefone. — Partiu?
Demorou uma fração breve de segundo até que o só-vim-dar-um-abraço-em-vocês descesse de volta pela garganta e fosse trocado pelo seu substituto, muito mais rápido:
— E vamos onde?
—Ah, não lembro o nome do bar. Ali perto da Rio Branco.
— Primeiro de Março, figura! Vai dar indicação errada? — E reconheceu a origem daquela risada que o havia paralisado. Os olhos se encontraram, e ele pôde ver que o poder não estava só risada. Ele então sorriu, pela primeira vez no dia, com os lábios, com os olhos e com a vontade.
— Ah, isso! Sei chegar. Entra aí, te levo.
— Mas eu preciso ainda subir e desligar tudo, to sem carteira nem nada. Só to com chave e celular. — E virou-se para quem quis dar atenção desde o início. — Se incomoda de ir comigo, para me indicar o caminho? Assim o pessoal vai adiantando. Isso se você não se importar de entrar no carro de um estranho. — Segundo sorriso do dia.
— Se você não se importar com uma estranha no seu carro, por mim não é problema.
— Entra aqui na portaria e me espera. Vou me apressar. E a gente se vê lá, pessoal.
Caminho para dentro do elevador, querendo parecer muito calmo, mas cruzou a porta de seu escritório como um maratonista na linha de chegada, dirigindo-se logo para o banheiro. Acendeu a luz de um golpe cego na parede, debruçou-se sobre a bancada para lavar o rosto, mas terminou aproveitando os dedos molhados para reparar a sua própria impressão de que seus cabelos negros estavam desgranhados. Ainda fazendo bochechos mentolados, foi resgatar seu frasco de desodorante do fundo da gaveta da mesa. Ao sair, não sem a última conferida no reflexo, deteve-se alguns segundos antes de entrar no elevador para que a respiração voltasse ao normal e não o traísse. Agora sabia que não havia esquecido nada.

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