quarta-feira, fevereiro 23, 2011

Sobre liçoes e adversários

Lembro uma vez, durante uma aula de canto. Entre um vocalize e outro, nao consegui mais me segurar e chorei. Chorei contido, brigando comigo mesma para nao fazer aquilo, mas fluiu. Meu professor à época, um senhor muito distinto de quase 80 anos, me perguntou se a sua princesinha estava bem.
—Estou, desculpe-me. Nao vai acontecer de novo. Podemos seguir.— — ele respondeu, chileno. Mas ficou sentado ao piano, com as maos no colo, olhar sereno e impassível, olhando para o tampo de madeira.
Eu fiquei parada, em silêncio esperando ele retornar. A espera me derrotou um momento:
—Podemos seguir.
Ele continuou em silêncio por mais um tempinho, até que proferiu:
—Sabe, mi princessa, quando choramos porque a música nos emociona é muito bom, nos mostra que temos emoçoes e que estamos vivos. Pero, quando choramos por amor, quando o amor que sentimos é usado para nos fazer sofrer, quer dizer que estamos morrendo.
Depois de dizer isso calmamente, ele voltou os dedos às teclas, prosseguindo o exercício, fingindo que ignorava a grande liçao que havia me dado, que foi recebida quase como um soco no estômago.
Já há alguns anos que isso aconteceu. Mas me lembro disso agora nao porque estou num ambiente onde ouço espanhol todos os dias, mas sim porque mais cedo fui pedir uma coisa ali no saguao do hostel onde estou e vi uma atendente que é sempre muito delicada comigo — mas na verdade, assim sao todos — atrás do balcao, com ar ofegante. Perguntei se estava tudo bem, e ela se limitou a acenar negativa e nervosamente com a cabeça. Os olhos vidrados numa tela de computador, teclando freneticamente. Nao demorou muito ela levantou dali, tentou se controlar, bebeu uma água, foi amparada pelas suas colegas. Nao falou muita coisa sobre o que houve, mas eu sei, já vi essa novela. Levantou dali, cruzou o salao com um cigarro apagado numa mao, o celular na outra e um misto de revolta e tristeza. Vi muito essa novela. Sei que nao se trata da mae doente, do cachorro mal, ou de uma resposta de uma oportunidade que ela esperava. Vi tanto essa novela que hoje deixo passar qualquer reprise.
O que me chama a atençao nao seria uma suposta falta de decoro profissional dela. O que acontece é que por muito tempo, e digo muito tempo mesmo, isso foi completamente real e tangível para mim. Por mais que eu nunca tenha achado que isso era bom, estava dentro dos meus parâmetros de normalidade. E entao as coisas mudaram, podemos dizer que de uns 7 meses para cá. Começou que eu passei a nao aceitar mais esse tipo de situaçao, e nao aceitar significa nao alimentá-las. Dizer que isto mora no meu encontro com uma pessoa que vivencie as coisas de outra forma e que eu soube responder a isso de forma positiva  pode ser controverso, porque prefiro pensar que eu, dentro do meu momento de saber o que me faz viver e o que me mata, tive a oportunidade de encontrar com esta pessoa tao importante e, daí, um buscar as respostas nos outros do que precisavam de uma relaçao. Impressionate que em 5 meses brigas de namorados, desconfianças, gritarias, implicâncias, rivalidades e falta de lealdade, de respeito, de carinho e de zêlo se tornaram algo de outro mundo dentro da minha cabeça. Como dizia minha avó, se acostumar com o que é bom é fácil. O que me impressiona sao todas as pessoas que, como essa moça, como eu há alguns meses atrás —e fui assim por longos anos na minha vida —, vivem tanto tempo dentro dessas relaçoes nocivas, corrosivas, achando as mais variadas razoes para justificá-las.
Se me fosse dada mais intimidade com a moça da recepçao — ou se me faltasse um pouco mais de tato — eu iria até ela para dizer que está errado, aquilo que ela está passando nao é para ser assim. Nao importa terminar ou continuar, importa ter respeito, nunca tratar o outro como um inimigo ou fazer com que ele se sinta exposto e desamparado, sobretudo dentro da sua própria intimidade. Quando duas pessoas se unem, nada além das suas próprias vontades atam seus laços. E exatamente por isso eles precisam ser bons, leves, no sentido gracioso da palavra. Mas eu sei que o problema nao é a falta de intimidade ou excesso de qualquer outra coisa que me impedem de ir lá falar com ela. Eu já estive nesse lugar, sei como as coisas se firmam fundo na nossa cabeça, sei que ela pode até ouvir minhas palavras numa boa, mas nada vai mudar, acreditamos que o sofrimento que sentimos valida o amor que sentimos. Isso vale para tatuagens, partos, dentiçao e aqueles primeiros dias da musculaçao; para relacionamentos, nao.
Eu só fui capaz de entender de verdade o que meu para sempre amado professor quis dizer quando fui capaz de vivenciar o outro lado do espelho, que era real nao pagar um preço alto pelo amor que sentimos; só hoje eu entendo que briguei contra mim mesma naquela época, nao para nao chorar, e sim para me manter ali, de pé, premitindo que pudessem fazer aqui comigo. E dessa briga nao saem vencedores.

Um comentário:

Francisco disse...

Bom dia Kath. Na divulgação do meu blog vou descobrindo pelo caminho outros igualmente interessantes. Parabéns pelo blog. Convido a ver o meu blog webart2011.blogspot.com sobre pintura e desenho e se poder divulgar pelos seus amigos agradeço.
Cumprimentos
Francisco Santos