sexta-feira, maio 27, 2011

Na contra-mão

Quando eu era estudante de Letras, ouvi uma história protagonizada por um dos antigos professores do departamento. Quem nos contou foi uma colega sua que me deu aula.
Ela lembrava do dia em que ele havia chegado na universidade indignado porque havia sido assaltado no ônibus e nenhum dos passageiros havia impedido o ladrão de descer da condução, o acadêmico estava revoltado com a passividade do povo.
— Mas você falou o que houve, o que tinha acontecido? Gritou para as pessoas? Pediu ajuda?!
— Nada! Ninguém se mexeu por mais que eu gritasse a plenos pulmões "peguem-no! peguem-no!" — Ele, sinceramente, não entendia porque nem como ninguém fez nada.
Isso foi numa aula de Lingüística, dada por uma das pessoas mais inteligentes que conheci na vida. Sempre dizia que aquela minha professora tinha nascido mesmo para ser astronauta, foi estudar Letras como quem joga sudoku. Se você acha que estou exagerando, hoje ela é juíza federal. 
Contando essa história, ela quis nos mostrar o quanto uma língua é dinâmica, ao contrário do que aprendemos no colégio. Foi com ela que entendi que o idioma de um povo, uma nação, não é uma peça de decoração que tenha que ser mantida em embalagem hermética para não se deteriorar. Pelo contrário, trata-se de um organismo, vivo; também é uma ferramenta, cujo papel é funcionar, não ser bonita ou preservar a forma que se falava em tempos de dom-barão-café. Quem regula os ajustes deste equipamento lingüístico é o povo — não como parcela menos favorecida/esclarecida/priorizada da sociedade, mas sim como população —  que maneja essa ferramenta e que conhece suas aplicações, condições e situações. Fica óbvio, então, dizer que a língua de um povo não pertence a uma pequena parcela que define seus caminhos, pertence a uma comunidade, depende do coletivo. Por isso também, naturalmente, não há uma única variante que sirva para todas as situações, em todas as localidades, o tempo todo; afinal, cada um ajusta seu equipamento como melhor lhe serve, correto? Preciso mesmo dizer que estes ajustes são feitos o tempo todo, várias vezes ao dia, com cada um que falamos?
Enquanto eu cursei meus ensinos fundamental e médio, eu achava tudo errado, criticava a forma de se ensinar, inclusive o que se ensinava. O mais curioso foi chegar na minha faculdade e entender que, não, aquilo não era mero papo de adolescente-transgressor-revoltado-que-acha-tudo-uma-bosta. Eu percebi até que não reclamava nem da metade da questão, e olha que só estudei Letras! Por outro lado, enquanto acadêmica leterata, estudando português e inglês, meu problema se configurou de outra forma. Meus maiores objetos de estudos são coisas que todos acham que conhecem. Cada um tem a mania de se achar o derradeiro reduto da última flor do Lácio que é a nossa língua, se apressando em corrigir as menores batatadas verbais de um conterrâneo.  De outro lado, com os canais a cabo, então, todo mundo — acha que — sabe inglês. Raros são tolerantes com a língua. Eu lembro uma vez ter escutado de uma pessoa muito querida que eu escolhi mal o que estudar, afinal, todo mundo sabe inglês e português. Vocês sabem, é chato dar sermão em gente querida, mas a profissão me forçou. 
O que pouca gente sabe é que faculdade de Letras não é ficar conjugando verbo e decorando dicionário. Estudamos processos lingüísticos, tanto no âmbito individual de cada ser humano quanto no âmbito coletivo de cada comunidade de falantes. Ah, sim, e tem aquela parte da Literatura porque não tem como falar de língua sem falar de poesia. Confidencio que a escolha deste curso foi mirar no que vi e acertar o que não vi. Terminou que aprendi lá coisas maravilhosas, as quais sempre me maravilharam desde criança mas que nem eu tinha noção para que eu estava olhando. Não me diplomei, mas nunca abandonei a visão que ganhei naqueles anos.
Divaguei tanto assim para fazer com que haja alguma chance de vocês entenderem porque uma notícia que tinha tudo para ser um motivo de imensa alegria se configurou numa desgosto enorme: Livro usado pelo MEC ensina o aluno a falar errado. Quando o MEC, aquela coisa da qual todos reclamam com motivo, finalmente se abre para uma visão voltada para o que os cientistas das línguas pregam, todo mundo critica querendo que volte a cristalização estéril do ensino. Ignoram que o que define a forma de uma pessoa falar não é a escola — caso contrário todos falaríamos da mesma forma, com próclises, mesóclises e ênclises, e sem nenhum "você" no meio da história — e sim sua comunidade. Cada criança chega à sala de aula com uma bagagem imensa da língua, construída pelos seus pais, vizinhos, comerciantes e todos que compõem o universo de cada um.
Como tudo tem que ter um lado positivo, menos CD de funk, pelo menos a discussão foi aberta. A Globo News recebeu em seus estúdios dois escritores para o debate; vale a pena ler também os comentários postados na página do vídeo. Além disso, chegou até mim um texto extremamente bem escrito e ponderado sobre a questão. Por ser extenso — e bem sei o que acontece com textos extensos em blogs — não vou abusar da minha sorte ou da paciência dos leitores, reproduzo abaixo somente o trecho final:

PS 1 – todos os comentaristas (colunistas de jornais, de blogs e de TVs) que eu ouvi leram errado uma página (sim, era só UMA página!) do livro que deu origem à celeuma na semana passada. Minha pergunta é: se eles defendem a língua culta como meio de comunicação, como explicam que leram tão mal um texto escrito em língua culta? É no teste PISA que o Brasil, sempre tem fracassado, não é? Pois é, este foi um teste de leitura. Nosso jornalismo seria reprovado.
PS 2 - Alexandre Garcia começou um comentário irado sobre o livro em questão assim, no Bom Dia, Brasil de terça-feira: “quando eu TAVA na escola...”. Uma carta de leitor que criticava a forma “os livro” dizia “ensinam os alunos DE que se pode falar errado”. Uma professora entrevistada que criticou a doutrina do livro disse "a língua é ONDE nos une" e Monforte perguntou "Onde FICA as leis de concordância?". Ou seja: eles abonaram a tese do livro que estavam criticando. Só que, provavelmente, acham que falam certinho! Não se dão conta do que acontece com a língua DELES mesmos!!

Voltando a falar sobre o  professor assaltado, talvez se fossem aqueles homens os cavalheiros no bonde relatado por Machado, todos teriam ido ao socorro do pobre senhor e seu algoz!

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