sexta-feira, maio 13, 2011

Sobre amor e reação

Na segunda-feira tenho uma aula agendada. Minha aluna, naquela manhã, me mandou uma mensagem lacônica dizendo que seu tio havia falecido e que não estava em condições de vir, o texto começava com "desculpa por não ir hoje". Essas coisas me cortam o peito. Tento ser rigorosa com meus horários de aula, mas eu entendo que há coisas pelas quais não queremos mesmo passar, por exemplo, acordar de manhã e se descobrir sem voz. A perda de um ente querido, então, nem se fala. Eu ouço desculpas quando na verdade queria dizer a ela "desculpa por fazer você ter que preocupar com isso no dia de hoje".
 Ontem ela veio para a reposição. Com muito tato — e ainda mais receio — perguntei sobre a família e o tio dela. Eu nunca sei como me portar diante de um falecimento. O futuro sr. Kath diz que tenho resposta para tudo. Para isso, não. Eu fico sem palavras mesmo, resignada ao fato de que não há consolo. Perder alguém é sempre dolorido. E ponto final. Sem chances de qualquer saída.
Seu tio foi vítima de um câncer devastador e cruel. No final das contas, só o coração e o cérebro ficaram intactos. Em meio a tanta dor, ele sabia que não tinha mais cura, ele sentia isso na pele. Segunda minha aluna, a tia dele, agora viúva, num ato ponderado de desespero, pediu aos médicos que tentassem de tudo, mesmo tratamentos experimentais, ela se responsabilizaria.
Então eu me lembrei do meu cachorro, meu cachorrão, que já se foi e cuja ausência se perde no tempo. Por um lado parece que já se foi uma vida, um século longe dele; por outro ainda me dói o vazio que ele deixou como se tivesse sido ontem. Foi um linfoma espartano que o levou. Não poderia ter sido diferente, não era qualquer coisa que derrubaria aquela criatura imensa e linda que ele era. Foi descoberto cedo, antes mesmo de seus baço e fígado estarem alterados, e o tratamento não demorou a começar. Mas então com o passar do tempo, ficou claro que aquele seria um adversário resistente. Não tinha como ganharmos.
E mais ou menos por aí eu vejo que poucas criaturas foram mais felizes diante de um câncer do que ele. Jogamos com todas as chances que tínhamos. E durante todo o processo, ele nunca teve aquele alarme na cabeça dele de que estava diante de uma das doenças mais temidas pela humanidade na era moderna. Na cabecinha dele, ele tava mal e ponto. E quando ficou óbvio que a batalha era perdida, coube aos que ficaram se conformarem. Largamos o tratamento sem a menor culpa, porque eu entendia que a medicina não passa de adiamento do inevitável. Quando chegou a hora em que não mais compensava a vida, ele dormiu. Fechou os olhos cercado das pessoas que ele mais amava e que mais amavam ele. Até o último momento se soube amado e nunca sozinho. Eu me lembro que isso foi dois dias depois de eu ter operado o joelho. Eu ainda mancava, mas bati o pé no chão dizendo ao meu pai que não podíamos mais adiar aquela decisão. Ele me lembrava o meu estado pós-operatório, mas eu só consegui pensar na dor que o meu cachorro sentia e que o meu estado não era nada diante daquilo, seria desumano ignorá-lo. E por isso, para mim, não foi traumático levá-lo para que dormisse definitivamente. Foi um ato de amor e compaixão. Mantê-lo vivo seria um ato de abandono.
Não, não quero me colocar como mais iluminada ou esclarecida do que a tia da minha aluna, seria escrotice (não achei termo melhor) da minha parte; não quero culpá-la pelo seu desespero. Por mais que eu amasse — e ainda amo — meu cão, eu sei que ele não era o meu marido, ou o pai dos meus filhos. Mas o que eu tiro desta história toda é que esta dor imensa que se criou na sua ausência só assim se fez porque sua presença era inundadora demais. O que vivi com ele foi mágico. Ele foi o grande motivo pelo qual eu adotei uma outra criaturinha divina, a Canela, que também não aguentou de saudades de foi atrás dele pouco tempo depois. E aí mora o destino de todo mundo que é ama e é feliz, sentir falta.
Triste mesmo aquele que não sente saudades.

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