Andando pelo Centro da Cidade, gesticulando em meio a uma conversa com amigos, viu um mímico imitá-la. Parou. Perdoou a cantadinha infame no ponto de ônibus, não rasgou a pipa que o camelô insistia em mirar na sua cabeça, deixou que o pedinte fosse embora sem nenhum chute depois da terceira insistência. Mas chega! O mímico não!
Seus amigos se calaram sem entender porque ela olhava para o banco com um sorriso enxertado no rosto. Os olhos, ocultos por trás dos aviators, estavam cristalinos.
Por um segundo, o mímico não se mexeu, comovido por não estar sendo ignorado. Manteve seu dedo em riste no ar, afinal, que gracinha, havia feito contato.
Ela continuou com o sorriso, mas os olhos, que ele nunca viu, alternaram-se para aquela forma comum aos carrascos. Agarrou com a mão firme aquele indicador enluvado e forçou dobrá-lo para o lado que os dedos não dobram, só em ocasiões especiais.
— Será que você vai continuar a achar graça disso?
O sujeito de camisa listrada e suspensórios foi arriando no chão, sem dar um único pio, com olhar esbugalhado, enquanto a multidão começava a se acumular em torno daquele grito silencioso. Havia uma pergunta não-articulada vinda das testemunhas anônimas. Que se passava ali? Seria mais um dos acontecimentos fantásticos que a cidade abriga? Seria apenas mais um número naquele Largo? Seria aquilo sério? Se caso, que poderia ser sério quando há um mímico envolvido?
A algoz mascarada inclinou-se, não para evitar que escutassem o quê ia dizer, mas para saborear mais a situação:
— Quer umas lágrimas de verdade nessa sua maquiagem?
A multidão ria; e isso era-lhe como um convite. Empurrou-o no chão, torcendo seu o braço nas costas, colando-lhe o rosto e peito contra o solo, enquanto puxava cada vez com mais vontade o suspensório que se mantinha livre, fazendo com que estalasse cada vez mais alto quando soltava-o. Enfiou a mão nos cabelos, desfazendo aquela carapaça reluzente feita à base de Gumex®, expondo à multidão a face desbotada e o peito chapiscado de poeira e papeizinhos de "Compro seu carro".
— Hoje vou fazer você gritar! — bradou, enquanto o prostrado ser negava veementemente com a cabeça.
Virou, colando-lhe as costas contra o mosaico de pedra portuguesa, desceu o joelho esquerdo sobre o externo, arrancou a margarida estéril que ele portava na lapela, mirando nariz e boca. Na fração de segundo anterior a ser sufocado pelo jato d´água, foi possível ver a surpresa aterrorizadora fazendo com que os lábios se contraíssem.
Se antes a multidão ria e encorajava, havia agora um silêncio tenso, para que fossem capazes de perceber o menor gemido que faria com que a promessa fosse cumprida.
— Vai se arrepender de não ter aceitado aquele emprego no telemarketing! — A isso, o corpo no chão se debateu, inutilmente.
Arrancou as luvas que, nesse momento, já não estavam mais brancas, e estapeava as bochechas em golpes rápidos e vigorosos.
— O que acha disso, seu palhaço?
— Palhaço, não! Eu sou mímico! — rasgou em meio a prédios e avenidas, afugentando os pombos, disparando os alarmes, causando microfonia nos amplificadores das lojas de CDs de forró.
A turba parou, estarrecida. Mas a vencedora limitou-se a soltar o derrotado e a erguer os braços, como se tivesse ocorrido ali um nocaute do Holyfield. Sequer sorriu, mas isso não significa que não regozijasse a vitória.
A multidão diviudiu-se entre abrir espaço para que ela passasse e apontar dedos escarnecedores para aquela figura abatida, que só havia as listras na camisa para lembrar quem fôra.
Ele se levantou. Abordava as pessoas como se quisesse convencê-las de alguma coisa, sua voz era como se acabasse de acordar. Mas ninguém deu ouvidos. Se tivesse algo bom a dizer, não teria se tornado mímico.
5 comentários:
Uma cena destas, aqui, chama-se de "faca e alguidar", na voragem da voz popular.
"Corta-se o pescoço e apara-se o sangue"
A multidão ululante delira ... como é apanágio quando há sangue.
Aí foi algum mal-entendido, ou mal explicado, mas que há seres com coragem ...
Até perco o "pio", (o falar)
Lindona!
Q excelente .. tive que vir aqui conferir essa "cena" surreal, ou seria real?! rsrsrsrs
Beijos!
Estou sem palavras...
Um curta!! tudo o que eu quero é um curta!!!!!
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