sexta-feira, abril 11, 2008

Quebrando o silêncio

Andando pelo Centro da Cidade, gesticulando em meio a uma conversa com amigos, viu um mímico imitá-la. Parou. Perdoou a cantadinha infame no ponto de ônibus, não rasgou a pipa que o camelô insistia em mirar na sua cabeça, deixou que o pedinte fosse embora sem nenhum chute depois da terceira insistência. Mas chega! O mímico não!
Seus amigos se calaram sem entender porque ela olhava para o banco com um sorriso enxertado no rosto. Os olhos, ocultos por trás dos aviators, estavam cristalinos.
Por um segundo, o mímico não se mexeu, comovido por não estar sendo ignorado. Manteve seu dedo em riste no ar, afinal, que gracinha, havia feito contato.
Ela continuou com o sorriso, mas os olhos, que ele nunca viu, alternaram-se para aquela forma comum aos carrascos. Agarrou com a mão firme aquele indicador enluvado e forçou dobrá-lo para o lado que os dedos não dobram, só em ocasiões especiais.
— Será que você vai continuar a achar graça disso?
O sujeito de camisa listrada e suspensórios foi arriando no chão, sem dar um único pio, com olhar esbugalhado, enquanto a multidão começava a se acumular em torno daquele grito silencioso. Havia uma pergunta não-articulada vinda das testemunhas anônimas. Que se passava ali? Seria mais um dos acontecimentos fantásticos que a cidade abriga? Seria apenas mais um número naquele Largo? Seria aquilo sério? Se caso, que poderia ser sério quando há um mímico envolvido?
A algoz mascarada inclinou-se, não para evitar que escutassem o quê ia dizer, mas para saborear mais a situação:
— Quer umas lágrimas de verdade nessa sua maquiagem?
A multidão ria; e isso era-lhe como um convite. Empurrou-o no chão, torcendo seu o braço nas costas, colando-lhe o rosto e peito contra o solo, enquanto puxava cada vez com mais vontade o suspensório que se mantinha livre, fazendo com que estalasse cada vez mais alto quando soltava-o. Enfiou a mão nos cabelos, desfazendo aquela carapaça reluzente feita à base de Gumex®, expondo à multidão a face desbotada e o peito chapiscado de poeira e papeizinhos de "Compro seu carro".
— Hoje vou fazer você gritar! — bradou, enquanto o prostrado ser negava veementemente com a cabeça.
Virou, colando-lhe as costas contra o mosaico de pedra portuguesa, desceu o joelho esquerdo sobre o externo, arrancou a margarida estéril que ele portava na lapela, mirando nariz e boca. Na fração de segundo anterior a ser sufocado pelo jato d´água, foi possível ver a surpresa aterrorizadora fazendo com que os lábios se contraíssem.
Se antes a multidão ria e encorajava, havia agora um silêncio tenso, para que fossem capazes de perceber o menor gemido que faria com que a promessa fosse cumprida.
— Vai se arrepender de não ter aceitado aquele emprego no telemarketing! — A isso, o corpo no chão se debateu, inutilmente.
Arrancou as luvas que, nesse momento, já não estavam mais brancas, e estapeava as bochechas em golpes rápidos e vigorosos.
— O que acha disso, seu palhaço?
— Palhaço, não! Eu sou mímico! — rasgou em meio a prédios e avenidas, afugentando os pombos, disparando os alarmes, causando microfonia nos amplificadores das lojas de CDs de forró.
A turba parou, estarrecida. Mas a vencedora limitou-se a soltar o derrotado e a erguer os braços, como se tivesse ocorrido ali um nocaute do Holyfield. Sequer sorriu, mas isso não significa que não regozijasse a vitória.
A multidão diviudiu-se entre abrir espaço para que ela passasse e apontar dedos escarnecedores para aquela figura abatida, que só havia as listras na camisa para lembrar quem fôra.
Ele se levantou. Abordava as pessoas como se quisesse convencê-las de alguma coisa, sua voz era como se acabasse de acordar. Mas ninguém deu ouvidos. Se tivesse algo bom a dizer, não teria se tornado mímico.

5 comentários:

xistosa, josé torres disse...

Uma cena destas, aqui, chama-se de "faca e alguidar", na voragem da voz popular.
"Corta-se o pescoço e apara-se o sangue"

A multidão ululante delira ... como é apanágio quando há sangue.

Aí foi algum mal-entendido, ou mal explicado, mas que há seres com coragem ...
Até perco o "pio", (o falar)

Unknown disse...

Lindona!
Q excelente .. tive que vir aqui conferir essa "cena" surreal, ou seria real?! rsrsrsrs
Beijos!

Brutux disse...

Estou sem palavras...

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gabriel Cruz disse...

Um curta!! tudo o que eu quero é um curta!!!!!